Wednesday, December 01, 2004

Scriptorium IV

Nessa tarde foi para a sua costumeira esplanada e o Destino quis que algo de insólito lhe acontecesse. Estava havia já duas horas repartindo o tempo entre a leitura de “Viver para contá-la” de Garcia Marquez e as suas anotações esporádicas no seu Moleskine, oferecido por uma amante sazonal. A ansiedade mental divergia-lhe com matreirice a atenção para a plateia do proscénio.

Ia atentando a todas as pessoas e imaginava as razões ocultas que as faziam permanecer, como figurantes de uma ópera, habituadas ao som e à imagem mas permanecendo porque realmente ali tinham que estar para compor o cenário.

Fartou-se daquela estaticidade física, levantou-se em direcção a um objectivo que não discernia mas lhe parecia melhor que a falta de inspiração que lhe transcorria a mente. Deu dois passos e uma das enorme s janelas do terceiro andar caiu no sítio onde estivera sentado. Ficou branco e afastou-se alheio à reacção das pessoas que lhe diziam que era um homem de sorte.
Parou para reparar que sangrava da face. Um estilhaço de vidro fixara-se abaixo do olho direito, a dor aguda fê-lo praguejar. Com a ajuda do reflexo de uma montra retirou-o. Dentro da loja uma rapariga olhava-a com o reconhecimento estampado no sorriso. Saiu e perguntou se estava bem.

A noite caiu e o dia entrou-lhe pela alma sem pedir licença. A sua natureza noctívaga rejubilou com a ausência do sol. Estava sentado há tempo sem conta à porta da loja. O passeio gelara-lhe os glúteos, mantendo-se desperto em considerações várias sobre aqueles olhos verde pinheiro nórdico que lhe trespassaram a alma.

Sete e um quarto. Com passo seguro saiu pavoneando com simplicidade o corpo bem feito, mas não demais, que corava de inveja devido aos olhos que comandavam toda a mole de carne com energia categórica.

Orniciteplático cortou-lhe o caminho e agradeceu o curativo feito há horas sem conta. “Gostas de surpresas?” perguntou-lhe, “Sim. Testa-me” e sorriu. Minutos e poucas palavras depois, um empregado com um impecável avental/macacão azul escuro dirigiu-se-lhes com uma bandeja carregada com o esplendor de dois cálices âmbar de Vinho do Porto.

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