Thursday, September 30, 2004

Lector in Sudio II


No recreio ao contrário do irmão mais velho, era um zero em tudo que fosse desporto. Era sempre o último a ser escolhido nas equipas de futebol e nem se podia acudir de ser dono da bola, porque nunca tivera uma bola de capão a sério, o mais que tinha era a sua inteligência para jogos individuais.

Aprendeu a jogar xadrez, porque as damas eram um jogo por demais básico. A estratégia de gerir seis tipos de peças diferentes apelava a toda a sua inteligência prática e teórica fazendo-o sentir poderoso por usar o cérebro em detrimento das fibras musculares.

Anos mais tarde os musculados, brutamontes, futeboleiros estariam “a dar massa” numa obra qualquer enquanto ele...

Foi nesta precisa altura que o ostracismo grupal dos seus colegas, o induziu a explorações a solo, não só dele próprio, como do espaço que o circundava. Em casa lia tudo o que lhe aparecia à frente, começando com os clássicos da BD, Cincos, Setes, Vernes, Salgaris, cobóiadas, policiais, Marias, Crónicas, TV Guias, Biancas, rótulos de detergentes, enfim tudo servia para aumentar a capacidade intelectual.
Criou assim na sua cabeça vários mundos paralelos, com todas aquelas personagens, situações, componentes químicos, lamechices, até com as fotografias do bébé do mês.
Fisicamente, saía de casa na sua bicicleta preta, de quadro à antiga, com travão traseiro accionado pelos pedais, com mudanças de punho como nas motas, e lá ia explorando os limites da sua reduzida geografia, aumentando-os a cada dia que passava.
Entrou em contacto, pela primeira vez, com a estupidez, simplicidade e ingenuidade humana, tanto quanto o seu verde intelecto estava preparado para suportar ou compreender.

Tuesday, September 28, 2004

Lector in Sudio

Desde cedo que Orniciteplático se mostrou inteligente de uma forma muito camuflada, tanto mais que n início os professores achavam que era meio estúpido. Tudo o que lhe era mandado fazer em casa ficava confortavelmente instalado na prateleira, aparecendo incumprido na aula seguinte. Tabuadas, fichas, contas cópias, enfim tudo a que era obrigado ficava por fazer. As reguadas que lhe eram distribuídas em igualdade pelas duas mãos, para não haver invejas, funcionavam de forma contrária à esperada. Reforçavam-lhe o carácter teimoso. Quanto mais lhe mandavam fazer, menos fazia. Hoje ainda tem uma dívida acumulada à escola de 12353 cópias, 7352 tabuadas, 12435 fichas e 98098 contas.
Em compensação tudo o que fosse feito dentro das paredes da sala de aula, era cumprido à risca e com a melhor das perfeições, não obstante passar as aulas concentrado nos painéis de azulejo que a decoravam. Sabia de trás para a frente a quantidade de armas, qual as suas formas, quem lhes pegava e como e a história que estava por trás daquela cena guerreira.
A Batalha de Aljubarrota, representada por um azulejeiro do Estado Novo, inspirava-o para fora da monotonia das aulas e punha-o a imaginar o que as personagens estavam a dizer, muito embora as bocas dos senhores não exprimissem o mínimo gesto que fosse. Via histórias e, em muitas, o cavalo, que estava em primeiro plano na imagem, confidenciava-lhe na hora das reguadas, daqui a uns anos vais ser como eles, grande, enorme e vais poder ter uma espada como a do Condestabre, novinha em folha. Se fosse hoje dir-lhe-ia, está descansado que nós vamos aí e espetámos coices e uma destas espadas, a maior de preferência, no cú do cão raivoso que é o teu professor! Atravessada é claro.

Monday, September 27, 2004

Génesis V

Frequentemente existiam confrontos entre os manos e a facção supracitada, acabando regularmente com cabeças rachadas fruto das armas utilizadas, pedras e paus.Desta foram, recheada de tropelias e cumplicidade nasceu uma amizade coesa entre a trupe de rapazes, só perturbado com a intromissão de novos amigos, adquiridos na escola. As insignificâncias da idade como o complexo de irmão mais velho, não vais comigo para a escola nem vens ter comigo no recreio, ou o moralismo de irmão mais novo, não consigo perceber como podes fazer isso, quando tiver a tua idade nunca o vou fazer, foram as únicas coisas que podiam ter azedado a relação mas nunca conseguiram superar a cumplicidade que vinha sempre à tona.

Wednesday, September 15, 2004

Génesis IV

Já fora subentendido que esta família não era propriamente abastada, e a bem da verdade classificar-se-ia como remediada. Todos os brinquedos que alguma vez teriam, seriam na sua maioria, um remediado sucedâneo dos brinquedos das crianças com quem se relacionavam. Esclareça-se também a bem da verdade, que no Natal eram presenteados, com um sacrifício extra dos progenitores e restante família, com brinquedos fora de série, que automaticamente eram desmontados, dada a curiosidade latente no cérebro dos jovens, em perceber como funcionavam aquelas maquinetas fascinantes. É lógico que depois de perdidas algumas peças os objectos deixavam de ter a funcionalidade para que tinham sido concebidos. Eram então refeitos de uma forma algo cubista-minimalista e utilizados noutras tarefas, coadjuvando os brinquedos preferidos dos terríveis irmãos, que eram preferencialmente artesanais.
Latas de sardinhas ganhavam portas com uma tesoura de poda e transformavam-se em carros que futuristicamente deslizavam em vez de rodar. Os homenzinhos surgiam na forma de caricas que eram fervorosamente catadas junto ao café mais próximo por entre borras de café, sacos de açúcar vazios e outras coisas que não convém descrever ao pormenor.
Com pregos e pedaços de madeira faziam-se tanques com múltiplos canhões, criando toda uma parafernália marcial que era exaustivamente discutida e regida pelo Estado Maior do Exército de Babel. Cascas de pinheiro, habilmente escavadas com as facas de cozinha, que não raramente apareciam com os bicos partidos, transformavam-se em barcos de todas as formas e feitios, porta-aviões sem aviões, corvetas, fragatas e todos os nomes que iam aprendendo relativos à realidade naval, com a vantagem de flutuarem realmente e nunca se afundarem por muita pedrada que levassem.
Com o crescimento veio a mudança de brincadeiras, com os índios e cowboys, as espingardas eram troços de couve, que também funcionavam como sticks de hóquei; arcos feitos com mimosas e fio de pesca surripiado ao pai; lanças com os arejões que estacavam os tomateiros de um cada vez mais raivoso pai; penachos com fio de lã roubado à mãe e penas roubadas às galinhas, que muito ofendidas não paravam de cacarejar; e os lenços dos cowboys tirados à socapa do roupeiro do avó, que passava dias intermináveis com o mesmo lenço de assoar. A imaginação dava para tudo. Cartografaram toda a rede de canalização de água das redondezas, como forma de reconhecimento técnico-táctico, para as mini-manobras militares a que se dedicavam no intervalo das actividades de faroestianos, sendo também sobremaneira úteis quando resolveram tornar-se ecologistas desmontando as armadilhas dos rivais do Lugar de Cima, que como objectivo tinham apanhar coelhos, raposas, texugos e afins.

Génesis III

O Gerador tinha sido um militar consciencioso, quando estivera a cumprir o serviço militar obrigatório. Não é que esta república das bananas estivesse constantemente a ser ameaçada por um inimigo invisível extra-fronteiras, mas era necessário cumprir marcialmente este dever para com a nação. Devido a uma providencial manopla do Destino, estivera sempre isento de comissões contra inimigos reais, o que não invalidava de todo, todos os ensinamentos teórico-práticos que lhe foram incutidos durante os três longos anos de fogo real e comezainas de carne de burro regada com whisky de contrabando.É claro que a aprendizagem, de tão zeloso militar, invariavelmente resultava numa faca de dois gumes quando transmitida à prole. Se por um lado ia ensinando às crias como agir furtivamente quando se roubava o anual pinheiro de Natal, por outro ensinava-lhes máximas como, não delatarás o teu companheiro ou, quando um faz merda comem todos. Em casa dos petizes a segunda era sempre consequência da primeira. Quando algo acontecia, o: nunca é ninguém, brotava em forma de urro louco da garganta do progenitor, e logo se providenciava um castigo para as pestes militarizadas de espírito, que não raras vezes ainda gozavam dizendo, a culpa é tua. As crianças coziam-se em copas e não deixavam escapar um indício que pudesse incriminar um dos camaradas, porque hoje és tu amanhã sou eu (legenda sob a foto dos miúdos com cara de quem acabou de foder qualquer coisa). Este tipo de situação exasperava o pai mas secretamente enchia-o de orgulho, os ensinamentos estavam a entrar.

Génesis II

A inevitabilidade geracional masculina do casal fez com que tentassem continuamente gerar um ente feminino. Anos mais tarde eram detentores de uma equipa de futebol de 11, sem suplentes.

Pois eis que Orniciteplático é levado pelo carinho da sua recém adquirida família para a casa que habitará até ao preciso dia de hoje, não de amanhã, mas hoje, mesmo que leia estas linhas daqui a 24 horas ou 34 anos, será sempre hoje. A obra de ficção é instantaneamente real quando regida por um autor autocrata e ditador, e não nos inibimos de fazer parecer o texto ainda mais real reafirmando certas premissas. O autor define a qualidade temporal, espacial, e outras coisas acabadas em –al já que ele que manda no seu pequeno universo. Mas voltaremos a este tema mais tarde.
Era uma vivenda com três quartos, nesta altura perfeitamente adequada às necessidades do agregado, mas dali a dois anos com o nascimento de mais dois pequenos seres, os dois quartos das crianças seriam equipados com beliches duplos, mais tarde triplos, aumentando o número de camas exponencialmente ao número de elementos da prole. Quando chegaram ao número 11 o Gerador passou a chamar à zona da casa ocupada pelos filhos Babel. Seis miúdos num quarto e cinco no outro convém referir que pelo menos era potenciar o caos.
Muito embora os quartos fossem amplos e os beliche dessem uma arrumação especial, não havia espaço nas paredes que não estivesse já ocupado por rabiscos indefinidos de grafite, autocolantes de jogadores de futebol, posters de actrizes e cantoras, fotografias de amigos e papéis febrilmente manuscritos, da autoria de Miguel que amareleceriam, inevitavelmente, com o tempo. A população dava razão ao progenitor, no epíteto dado à área, com a vasta profusão de elementos visíveis, materializantes dos seus mais secretos pensamentos e emoções. Orniciteplático desde cedo que manteve uma relação muito próxima e cúmplice com o seu irmão mais velho. Até ao ingresso na escola primária eram inseparáveis. Se um dizia mata o outro já há muito que tinha esfolado. Faziam asneiras a todo o minuto e segundo, provocando a exasperação da figura paterna, mas de certa forma a culpa era dele.

Monday, September 13, 2004

Génesis

Exactamente há 26 anos atrás, nasceu uma criança, que queria a onomástica dos seus pais, padrinhos, vizinhos e demais familiares, tomasse por seu verdadeiro e intransmissível nome, Orniciteplático. Há exactamente 26 anos atrás, porque por desejo da narração dos acontecimentos relativos à vida deste indivíduo, deveria e deverá ficar uma personagem intemporal, e por isso terá sempre 26 anos quando o leitor começar a ler este digitaluscrito. Desta forma também não se refere o local de nascimento porque podia ser em qualquer lugar, para além de não enquadrada num tempo também não o será no espaço.
No hospital da Misericórdia, as mobílias de cinza acetinado, os bisturis, a máquina de radiografias, o doseador de água do corredor, as batas, as máscaras cirúrgicas, os médicos, enfermeiros e anestesistas, parteiras e parturientes agiam com indiferença perante o nascimento desta, para já, inclassificável personagem, que como já referimos tomará o nome de Orniciteplático.
Ora, anos mais tarde este mesmo Orniciteplático seria encontrado, de uma forma muito descontraída e indiscutivelmente divertido na companhia de uma pessoa que seria responsável por – é melhor parar por aqui porque senão iremos na página vinte sem ainda termos saído do hospital.
Como narrávamos, antes de sermos rudemente interrompidos por uma pressinha de acrescentar elementos contemporâneos à história, Orniciteplático nasceu na indiferença de um frio hospital, mas de um amor quente e sincero, gerido inteligentemente pelos seus pais. Quente..., bem, tinha que ser quente para gerar uma forma de vida que se tornaria algo tresloucada, que não louca, com o passar dos tempos.
À semelhança de seu irmão, Orniciteplático fora gerado às portas do Outono, sem que ninguém tivesse tocado à campainha. Nesse tempo, o casal gerador não era possuidor do vulgar cinescópio, conversor de feixes hertzianos em raios catódicos, criando imagens que divertem e aparvalham a audiência, ou num palavreado mais acessível, não tinham televisão. Assim a única forma de diversão e distracção era a aplicação de todas as energias em estudos de anatomia do sexo oposto. Os geradores, novos e ainda com privilégios de descobridores de novas sensações e emoções, primavam por dia após dia, levantar pelo menos um novo Padrão dos Descobrimentos, como marca conclusiva da dádiva de novos mundos ao mundo. E deram, Orniciteplático, ao mundo.

A noite fria entrou-lhes pelas frinchas da porta insuficientemente calafetada. Esta, com o último quarto inferior da área forrado a chapa, era um convite à junção de corpos, como se isto fosse necessário. Do quarto dos geradores ouvia-se o choro do, que seria o, futuro irmão de Orniciteplático na divisão ao lado. A Geradora levantou-se e remediou a situação com carinho e calor, de mãe dedicada, e acalmado o petiz juntou-se ao companheiro. Sem mais imagens, que não a dos seus corpos, socorreram-se destes para ilustrar a felicidade a que estavam condenados e, aquecendo-se de forma já sobejamente conhecida, geraram uma nova vida.
Anos mais tarde Orniciteplático gozaria com os pais dizendo que naquele tempo quando o frio apertava e não havia televisão, os pais também de alguma forma se apertavam mutuamente, fazendo verdadeiras longa-metragens.
Quando mês e meio depois a Terra disse ao Seminador que nova safra lhe brotava já no útero, o Gerador ficou feliz e com esperança que fosse uma menina, compunha-se o desejado casal e fechava-se a linha de produção. Sete meses e meio depois, mais coisa menos coisa, ainda a suar em bica, ao vislumbrar o pequeno apêndice viril entre as pernas do seu secundigénito pensou, posso voltar a tentar, alguma vez há-de acontecer.

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