Monday, December 27, 2004

O estranho caso das Agulhas de Pinheiro e como os Desvirginadores foram ludibriados III

Com a educação humanista, “de vistas largas” como diziam as pessoas de Terceleiros, Gerador não podia ficar a ver o seu amor ser desvirginado por um qualquer, segundo ele entendia, as coisas não deviam funcionar assim. Não queria que a mãe dos seus rebentos estivesse tatuada com um triângulo, símbolo de que alguém lá estivera antes dele. Aliás era fácil de ver que aquela história não era nada recomendável. O lema dos Desvirginadores era “O que não serve para os outros também não serve para ti!”.

Daí o pânico.

A pretendida, era filha de um artesão de coisas inúteis. Tinha muito dinheiro, mas dizia-se na terra que era de uma grande herança, porque o que ele inventava não devia dar dinheiro nenhum “não vejo nenhuma utilidade naquelas traquitanas que ele pra lá faz” dizia alguém na tasca.

De facto era muito estranho para toda a gente como é que um senhor tão distinto fazia coisas tão disparatadas. Uma delas era uma caixinha com um fio que de lá saía e se ligava a dois cotonetes que se metiam nos ouvidos. Na caixa metia-se um disco que de um dos lados era como um espelho e o Artesão das Coisas Inúteis dizia que continha músicas lindíssimas e todos os sons que se pudesse imaginar.
Classificação: Louco.

Um dia surgiu com um spray que afirmava ser “milagroso meus amigos, é o que vos digo, milagroso” e dizia, por entre as gargalhadas abafadas dos que o ouviam. Servia para encher umas câmaras-de-ar que se punham dentro de uns círculos de borracha, especialmente criados para substituir as rodas de madeira e de ferro dos carros de vacas, bois, burros, cavalos, de tudo.
Classificação: Maluco.

Outra vez aparecera com uma ferramenta que servia para abrir caixas de lata que contivessem alimentos dentro. Ainda houve alguém que teve a coragem de lhe dizer para inventar primeiro as latas para poder usar o instrumento.
Classificação: Caso perdido.

O estranho caso das Agulhas de Pinheiro e como os Desvirginadores foram ludibriados II

Eis então a razão do pânico do Gerador. Ele estava bem a marimbar-se para as tretas da Tradição. Passara toda a sua vida a ler os jornais do tutor, que como correspondente d’A Gazeta de Nenhures, era o único da vila a ter direito a informação actualizada.

O Tutor dava uma educação enriquecida com vitaminas literárias ao gerador. Pusera-o desde a mais tenra idade a descodificar toda a informação que lhe era fornecida. Fazia-o ler com olhos de ver. “Não comas tudo aquilo que te dão, muita coisa, até nos livros pode estar envenenada. Aprende que eu não vou durar para sempre, é preciso agregar a informação e peneirá-la como se peneira a farinha. Escolhe, esmiúça tudo e depois pensa sempre por ti.”

É claro que Gerador via os seus colegas a seguir o caminho do não pensamento. A Tradição era poderosa e conseguia fechar os olhos a toda a gente, mas também do que é que se estava à espera?

Um dia perguntou ao Tutor, “O que é a Tradição para ter um controlo tão grande sobre toda a gente?” ao que lhe respondeu “Meu filho, um dia vais lá chegar pela tua própria cabeça, mas para já fica com esta achega, a Tradição é como uma senhora que está constantemente a baloiçar uma cadeira de balancé, como a minha. Vai ditando as suas ideias, e com uma venda vai tapando os olhos de toda a gente. Esta venda tem um pequeno furo que vai deixando passar uma só perspectiva da realidade. No entanto há pessoas que estão muito longe dela para ser vendadas.

Têm uma visão diferente e lutam com paciência contra a sua influência, educando alguns discípulos para continuar a obra. Todos juntos somos como bichos da madeira, porque a intenção não é matar a senhora mas destruir a cadeira. Destruída esta, a senhora vai cair e bater com a cabeça e não mais se vai levantar. Se pelo contrário destruíres a senhora, vem outra e senta-se no seu lugar. Mina a base e terás sucesso.”

É claro que com uma metáfora deste calibre, o Gerador ficou a perceber o mesmo, mas a semente já lá estava.

O estranho caso das Agulhas de Pinheiro e como os Desvirginadores foram ludibriados


Quando o Gerador conheceu aquela que seria a sua consorte, desde o primeiro momento se empenhou na sua conquista, e aquela pequena flor de miosótis, assim lhe chamava ele, sentia-se regada pela dedicação que ele lhe votava tão febrilmente.

Todo o seu corpo entrou em pánico quando percebeu que estava apaixonado. A tradição dizia que todas as raparigas da vila não podiam perder a virgindade com gente da aldeia. A primeira menstruação era vista como sinal de impureza, e as raparigas que até aí eram o bastião da pureza alva e branca, passavam de anjos a demónios com todas aquelas febres e calores da idade.

Para voltar ao estado puro, tanto quanto era possível, eram desvirginadas por forasteiros, os Desvirginadores. Era um grupo que morava não se sabia muito bem onde mas quando era necessário aparecia. Dizia-se que sentiam as hormonas das raparigas e lá apareciam.
A purificação era rápida. Iam todos para a casa das virgens faziam o que tinham a fazer e no final tatuavam no pulso das agora mulheres um triângulo equilátero, sinal de produto certificado.

Wednesday, December 22, 2004

Terceleiros

Comentário de Trânsito era um rapaz que nascera quando não devia ter nascido. Não que fosse mal feito ou coisa que o valha, mas pura e simplesmente a sua vocação não tinha muito por onde se expandir.

Quando cresceu e percebeu a sua vocação, ficou muito desiludido porque tinha a certeza que ali faltava qualquer coisa. Estava à frente de todas as mentalidades e as pessoas de Terceleiros quando ouviam as suas parangonas acusavam-no de futurista, progressista e louco. Caía um bocado mal na mentalidade tradicionalista da população terceleirense, que alguém sonhasse sequer em ver centenas de carros movidos a um combustível incerto, a cruzar as pacatas ruas da vila a alta velocidade, a matar pessoas e vacas e cães e gatos e Tudo!

Comentário de Trânsito pouco se importava com o que os outros pensavam. Ficava horas sentado à porta do café a ver o trânsito de pessoas e animais, lixo empurrado pelo vento, carros de vacas, de burros e de cavalos. Tudo fazia sentido para ele, era um movimento perpétuo que era natural e nunca deixaria de fazer sentido para ele, muito embora para os outros não passasse de loucura.

Num qualquer dia de Julho a magia aconteceu e a monotonia desapareceu. Um grande monstro mecânico entrou em Terceleiros quase matando a Emissora Ncional de susto e Comentário de Trânsito de prazer. Quatro rodas tipo comboio, mas com borracha a proteger, para não haver necessidade de carris, um corpo metálico luzidio e uma chaminé que deitava grandes nuvens de fumo preto.Funcionava a carvão e chamava-se autocarro.

Index

No cruzamento da rua Cardus com a Uintemanus, morava uma senhora mais velha que o século a quem chamavam Emissora Nacional. Ninguém se lembrava quando lhe tinham posto o nome, mas toda a gente sabia porquê. Passava a vida à janela a inventariar os comportamentos e as actividades das pessoas que circulavam, anotando as suas observações nos eu caderno de mercearia que catalogava ordenadamente. Cada caderno albergava a informação de vários dias, e num outro caderno do mesmo tipo mas de maiores dimensões registava os dias a que cada caderno se referia. Era uma arquivista fora de série, e toda a gente se interrogava quantos cadernos teria ela já escrito.

Transformava facilmente a realidade em boato e o boato em realidade. Era tão boa nisto que ninguém a queria ter como inimiga e todos faziam questão de a cumprimentar, não se fosse ela lembrara de inventar qualquer coisa.

A sua rede de informações, composta por mais três senhoras que moravam nas outras três esquinas das praças da vila, reunia-se com ela todos os dias às seis da tarde para trocar informações. É claro que durante a meia hora que durava a reunião havia um vazio de informação nos cadernos da Emissora, mas era por uma boa causa.

Tuesday, December 21, 2004

Res Publica II

Um ano e meio depois, caiu o governo e o seu cunhado foi eleito em sua vez. Ocupou o lugar por sete meses até que caiu o governo outra vez e nova substituição e reempossamento. Durante onze longos anos, os dois cunhados forma depostos e reeleitos sete vezes cada, enquanto estavam fora de funções faziam as vezes da oposição.

No dia 11 de Julho de 19##, onze anos depois de o senhor Aferidor ter sido eleito pela primeira vez, e com dois filhos na sua alçada, um dos quais o pai do Gerador, jantava ele com a família, o seu rival político inclusive, quando lhe deu um aperto nas coronárias e declarou solenemente “vou aferir balanças para o céu” ao que o cunhado lhe respondeu “É melhor ir contigo para ver se não aldrabas nada.”, e caíram os dois para o lado, mortos.

Comentou-se na vila que competiam tanto que até ficava mal morrer um primeiro que o outro. É claro que foi a falta de competição que fez o outro morrer.

Veio o carro de vacas, com as rodas a chiar por falta de sebo e carregou os dois caixões para o cemitério. Bonita cerimónia foi aquela, com toda a gente de Terceleiros a acompanhar a carroça e a borrar os sapatos de verniz na bosta fresca que as vacas descarregavam sem cerimónia.

No cemitério colocou-se uma bandeira da monarquia e outra da república em cada um dos caixões, e como ninguém tinha a certeza de quem estava em qual, ironicamente, enganaram-se.

Anos mais tarde, por uma razão desconhecida, os corpos forma exumados para se descobrir que estavam virados de barriga para baixo das voltas que deram, certamente devido à odiada bandeira rival.

Res Publica

Em 19## a política não era séria, ou antes não era para brincadeiras, dadas as conflituosidades que assolavam os dois partidos da nação.

O Contra Revolucionário Unido C.R.U., partido de inspiração monárquica, regia-se por padrões extremamente conservadores. Difundia ideais aristocráticos e capitalistas sendo assim classificado de partido da antítese, já que um dos ideais automaticamente negava o outro, mas fazia os possíveis por funcionar.

A oposição tomara o nome de Sociedade Organizada de Guerrilheiros Republicanos Anárquicos S.O.G.R.A., que é um bom exemplo de como uma sociedade democrática aceita tudo. Resulta de dois grupos anti-monárquicos, o dos guerrilheiros e dos anarquistas. Depois de algumas discussões resolveram fundir-se para fazer frente ao CRU, e não havendo cedências de parte a parte, foram obrigados a optar pela original sigla, e tão chatos eram como oposição, que lhes caiu como uma luva.

O ambiente era muito pesado e o número de apoiantes das duas facções era muito equilibrado, o que fazia com que em todas as aldeias, vilas e cidades do país houvesse sempre discussão acesa, e as eleições fossem ganhas ao nariz.

Panfletos e pasquins eram escritos e distribuídos com frequência para aquecer ainda mais os ânimos. Insultavam-se os candidatos e os detentores de cargos políticos da pior das formas, mas sempre com muita ironia e classe, afinal era um povo irónico e com classe.

Na época das eleições chegava-se por vezes a cúmulos que nunca eram castigados devidamente, abrindo precedentes ridículos que eram tomados como exemplo e repetidos vezes sem conta.

Êxodo

O pai do Gerador chegou a Terceleiros, vindo de uma aldeia dos bastidores das serras, que se viam do lado Norte a muitos quilómetros de distância. Era aferidor de pesos e medidas, uma espécie de caixeiro-viajante circunscrito a uma área mais reduzida.

Trabalhava quatro meses por ano. Entre Maio e Junho fazia a aferição ou afilamento dos pesos e das medidas e em Novembro e Dezembro conferia os mesmos. Em poucas palavras era um detector de aldrabices. Nunca se sabia quem é que iria fazer batota com as balanças ou com as medidas para os cereais.

Foi destacado para a vila devido a rumores de corrupção passiva. Amigos bem colocados, para lhe limpar o nome, deslocaram-no para Terceleiros que era desconhecida dele e também, felizmente dos seus inimigos.

Dois anos depois da chegada, casou com uma bonita rapariga, com a promessa de uma extensa prole. Nesta altura como o seu tempo livre era muito e a família em projecto necessitaria de fundos extra, que não subornos, concorreu à junta de freguesia.

Na altura batia-lhe no coração o mais exaltado sentimento em relação à tão amada causa monárquica. O Rei era o seu pai e a Rainha o seu amor platónico de todos os dias. Nutria assim uma relação amor/ódio com as cabeças de estado.

Concorreu pela primeira vez contra o seu cunhado, republicano de gema e clara. Ganhou porque era monárquico.

Vitruvio

Terceleiros era uma pequena vila que tinha muito orgulho nas suas cores políticas, ou seja dos dois partidos. Situava-se num pequeno vale, todo pintado de lilás cor de urze e verde cor de pinheiro nórdico. Era cortada a meio por uma linha de água a que muito a custo se chamava rio, mas os terceleirenses, por orgulho incontido, e como tinham que ter tudo o que os vizinhos não tinham, chamavam-lhe rio e assim seria e ainda é, o Rio Terceleiros.

A vila tinha cerca de 1500 habitantes e quatro ruas que faziam um desenho em forma de #. A malha viária, segundo o historiador local, remontava à época romana. Segundo a sua teoria uma legião romana ali acantonada, resolvera fazer uma intrépida experiência, e acrescentou ao cânone Cardus/Decumanus (uma rua funcionava como espinha dorsal e era cortada perpendicularmente por outra, com orientações Norte/Sul e Oeste/Este) uma rua paralela a cada uma delas. A paralela ao Cardus chamava-se Bicardus e a correspondente ao Decumanus, Uintemanus. Que melhor nome para baptizar esta teoria urbanística senão planta cardinal? Existiam plantas ortogonais, radioconcêntricas e agora também cardinais, devido ao desenho.

Foi uma pena que a sua tese de Doutoramento tenha sido chumbada, porque poderia ser usado este modelo em muitos e variados aglomerados populacionais, mas já havia um nome para este tipo de planta, regular vá-se lá saber por quê.

Cada uma das ruas tinha exactamente 628 metros de comprimento, numa clara alusão ao dobro do valor de П. O loteamento fora feito na época romana e todas as casas se encontravam construídas sobre as casas originais do século II. Existiam quatrocentos fogos habitacionais e alguns edifícios de serviços localizados estrategicamente nas quatro praças principais.
Todos os habitantes da vila eram vizinhos e toda a gente conhecia toda a gente. Era inevitável que as pessoas soubessem da vida uma das outras.

Friday, December 17, 2004

Scriptorium VII

O Grupo conheceu-se e formou-se n’A Galeria. Não tinham intenções políticas nem nada que se assemelhasse, tinham o gosto comum por copos de vinho e o combate feroz à extinção da Tradição. Quando tomaram consciência de como tudo à sua volta se desmoronava, consolidaram a amizade que tinham criado com a argamassa da intelectualidade.
Juntavam-se quando calhava, muito por acidente, não gostavam de ficar em casa agarrados ao cinescópio, e divertiam-se a pensar em novas formas de sublevação cultural com medo de cair no marasmo social que contagiava todos como a peste bubónica.
N’A Galeria servia-se de tudo um pouco da dita dieta mediterrânica. Vinho, azeitonas, o delicioso pão de trigo e a broa de milho barrados com azeite do interior, tudo muito caseiro e alimentício, propulsores da mente e combustíveis do corpo. A cerveja, herança da Idade do Ferro, quase nunca metia bedelho por ser incompatível com a maioria dos petiscos servidos.
O Grupo diletava acerca de projectos demasiado utópicos para o comum dos mortais, mas para eles fazia todo o sentido. Numa das inúmeras conversas, surgiu a ideia do jornalismo anacrónico, exercício capaz e robusto, que lhes permitia dar largas à imaginação com uma poderosa argumentação científica. No fundo era uma forma de aumentar o conhecimento através de brincadeiras e jogos de palavras. Tudo começou numa noite de copos, para variar.
Os cinco meninos do grupo debatiam-se com coragem e valor com um bolo-rei, posto na mesa pelo Sr. Eduardo, quando Rumelardo, o mais novo do grupo, conhecido pelas suas ideias loucas lançou a malha à mesa.
“Estou a ler um romance que fala sobre cultos do século IV d.C., mas isto não interessa nada, é só para vos situar cronologicamente. Há uma passagem que me fez parar e pensar. Numa descrição de uma mulher, ela é apresentada ao leitor como cheirando a cravo-da-índia, entre outras fragâncias...”
Respirou, bebeu um pouco de vinho e notou que a frase fizera efeito e que os colegas desejavam beber o resto da exposição dos seus lábios.
“É um romance histórico, pensei, mas quem escreve uma obra deste tipo tem que ser mais cuidadoso, principalmente com os anacronismos.
Facto: os romanos de certeza que conheciam esta especiaria, aliás havia linhas de abastecimento de especiarias provenientes do Oriente.
Questão: os romanos conheciam a Índia com este nome?
Conclusão: Índia é uma versão do termo Persa Sindhu, que é o nome comum do rio Indo. O nome Índia é começado a ser usado pelos europeus como uma europeização de um termo que não encaixava nas nossas línguas, tanto mais que desde a dinastia Mughal, que começa cerca do ano Mil, os nativos deste simpático país apelidam a sua pátria de Indostão ou Hindostan. Quer dizer que usar o termo cravo-da-índia na época romana é um anacronismo.”

Saturday, December 11, 2004

Scriptorium VI

E foram pacientes até que não se contiveram mais. Passavam a noite a fazer amor e a manhã a discutir o que iam lendo. Ele alimentava-a com o que ia escrevendo e ela alimentava-lhe a inspiração com o que sentia. Ela chamava-lhe Garfield, porque só comia, dormia e escrevia. Raras eram a vezes que saía de casa. Os textos para a revista da faculdade mandava-os por Email, o tabaco chegava-lhe a casa pelas mãos dela e o amor compelia-o a fazer exercício, o melhor dos exercícios.
Passavam a vida a rir e eram felizes com a vida que tinham.
Ela gabava-lhe a inteligência e ele gabava-lhe o corpo. Valera a pena a espera, o troféu por que tanto esperara estava ali nos seus braços, para sempre, pelo menos julgava ele. Mas o ser humano é um ser muito estranho e toda aquela felicidade começou a fazer-lhe confusão. Voltou aos seus antigos contactos e começou a sair à noite. Na altura o Grupo frequentava um dos mais conhecidos tascos da cidade.
Recortes esparsos, descritivos da realidade ali vivida por uns e outros boémios da cidade, estavam afixados com cola branca nas paredes.
O dono, mais uma personagem característica daquela zona ribeirinha, com o seu penteado estilo ponte, - a careca era coberta pelos fios de cabelo resistentes do lado esquerdo e faziam a ponte para o lado direito da cabeça, cobrindo de uma forma cómica a calvície que não alastraria mais – recebia com simpatia os boémios universitários. Vendia vinho a copo, atraindo assim todos os apreciadores de vinho a martelo, jovens. Conseguira manter uma resistência tácita aos velhos bêbados, tarefa hercúlea mas conseguida, e a sua clientela cingia-se aos jovens universitários, bem-educados, pensantes e falantes.
Do que ele gostava era de ter os seus meninos a dar brilho à casa. Vendia também traçadinhos (anis com bagaço), ginginhas (licor de ginja) e Eduardinhos, segredo da casa. Bebia-se com gosto e pelo barato.
A sua esposa, sentada sempre no seu cadeirão de veludo, era conhecida como a Madrinha, todos os que lá entravam tinham que a cumprimentar com dois beijos e pedir-lhe a bênção. Quando soube do epíteto que os boémios lhe haviam dado “os marotos dos rapazes” entrou no jogo e começou a dar-lhes o folar todas as Páscoas, um traçadinho por cabeça. É claro que interpretou mal a analogia que se fazia com Don Corleone de Scorcese, mas era a sua simplicidade a falar.
Orniciteplático, depois de inserido naquele microcosmos, pediu um dia aos senhores que lhe deixassem escrever, numa parede vazia, um conto sobre aquele tasco. Com o apoio do Grupo lá os convenceram e lá foi escrita, a marcador a álcool, uma história sobre que lá passava. Tornou-se tradição e uns meses depois o negócio aumentou. Pintores escritores e fotógrafos deixaram lá a sua marca e o tasco transformou-se num espaço de exposição e mudou o nome para A Galeria.

Friday, December 10, 2004

Scriptorium V

Estivera tempo demais à espera daquele momento, mas calibrava as emoções para não correr o risco de parecer precipitado.

“Tudo isto te pode parecer demasiado estranho, mas acredita que no momento em que te vi a sorrir para mim naquele pálido reflexo do que eu sou, toda uma série de recordações de como seria ou como será me assolou como uma avalanche de sentimentos descontínuos mas acima de tudo coerentes.

Deve ser confuso para ti que um homem a quem ministras casualmente um curativo, se apresente à tua frente como o maior dos apaixonados sem nunca sequer lhe teres posto a vista em cima.

Há muitos anos atrás conheci uma rapariga que se tornou no primeiro amor platónico da minha vida, tinha eu então uma idade muito tenra para perceber os meandros da produção do Amor.
Assim como entrou na minha vida saiu, devagar e com calma mas ao mesmo tempo de chofre. Perguntei-me várias vezes o que seria feito dela e não consegui ter resposta, e concerteza que também não fiz o esforço que deveria e que faria hoje em dia para atingir um objectivo, enfim… maturidade.

Quando menos se procura mais se encontra, e foi o que aconteceu, ainda bem. Num momento em que eu já não tinha na ideia encontrar-te aqui estás tu.”

“Eu?” Seguira a história com um brilho crescente nos olhos e percebera que a história que lhe estava a ser declamada por aquele gigante moreno, tinha algo a ver com ela. As suas histórias já se haviam cruzado numa das encruzilhadas do Destino.

“Minha doce Pancromícia… se soubesses quantas vezes sonhei contigo e qual teria sido o teu percurso… Sonhei milhares de vezes com o teu sorriso, com a tua cara e as palavras a brotarem dos teus lábios em torrentes contínuas de sentimentos que me atingiam no eixo central do meu coração. Sonhei, escrevi, descrevi idealizei-te e aqui estás tu, sem dúvida muito melhor que o produto da minha imaginação, porque és de carne e osso e não um sonho que quando acaba nunca é retomado como querias porque não tens controle sobre o teu inconsciente!”

“Nunca pensei que podia despertar paixões deste tipo… Nunca ninguém me tinha dito o que disseste de uma forma tão apaixonada como tu.

De qualquer das formas também eu perdi o contacto contigo Ornicteplático, gostava de voltar a conhecer-te com o risco implícito que corremos, que é conhecer-te como um homem e não como os miúdos que éramos. A alegria do reencontro pode envenenar-nos mas vamos com calma. Do futuro ainda ninguém mandou cartas por isso vamos ser pacientes.”

Wednesday, December 01, 2004

Scriptorium IV

Nessa tarde foi para a sua costumeira esplanada e o Destino quis que algo de insólito lhe acontecesse. Estava havia já duas horas repartindo o tempo entre a leitura de “Viver para contá-la” de Garcia Marquez e as suas anotações esporádicas no seu Moleskine, oferecido por uma amante sazonal. A ansiedade mental divergia-lhe com matreirice a atenção para a plateia do proscénio.

Ia atentando a todas as pessoas e imaginava as razões ocultas que as faziam permanecer, como figurantes de uma ópera, habituadas ao som e à imagem mas permanecendo porque realmente ali tinham que estar para compor o cenário.

Fartou-se daquela estaticidade física, levantou-se em direcção a um objectivo que não discernia mas lhe parecia melhor que a falta de inspiração que lhe transcorria a mente. Deu dois passos e uma das enorme s janelas do terceiro andar caiu no sítio onde estivera sentado. Ficou branco e afastou-se alheio à reacção das pessoas que lhe diziam que era um homem de sorte.
Parou para reparar que sangrava da face. Um estilhaço de vidro fixara-se abaixo do olho direito, a dor aguda fê-lo praguejar. Com a ajuda do reflexo de uma montra retirou-o. Dentro da loja uma rapariga olhava-a com o reconhecimento estampado no sorriso. Saiu e perguntou se estava bem.

A noite caiu e o dia entrou-lhe pela alma sem pedir licença. A sua natureza noctívaga rejubilou com a ausência do sol. Estava sentado há tempo sem conta à porta da loja. O passeio gelara-lhe os glúteos, mantendo-se desperto em considerações várias sobre aqueles olhos verde pinheiro nórdico que lhe trespassaram a alma.

Sete e um quarto. Com passo seguro saiu pavoneando com simplicidade o corpo bem feito, mas não demais, que corava de inveja devido aos olhos que comandavam toda a mole de carne com energia categórica.

Orniciteplático cortou-lhe o caminho e agradeceu o curativo feito há horas sem conta. “Gostas de surpresas?” perguntou-lhe, “Sim. Testa-me” e sorriu. Minutos e poucas palavras depois, um empregado com um impecável avental/macacão azul escuro dirigiu-se-lhes com uma bandeja carregada com o esplendor de dois cálices âmbar de Vinho do Porto.

Scriptorium III

Eis que a epifania que tivera foi confirmada com plenitude pelas palavras reveladoras do seu professor. Nunca tinha discutido o tema com ninguém e tinha a sensação que era um pária da sociedade. Sempre fora precoce em muitas coisas e muitos amigos o caracterizam com a expressão “és muito à frente”. Embora não concordasse com a forma como se exprimiam, muitas vezes se interrogava se não seria verdade, se não viveria numa sociedade que era ou muito adiantada ou atrasada para a velocidade do seu pensamento.

Seis anos depois de ter prometido a si próprio que nunca mais verteria uma lágrima, a introspecção obrigou-o a fazê-lo. Farto de ser controlado pela sociedade reafirma a vontade de cumprir o que o coração lhe dita e ser o vagabundo que sempre ambicionou ser.

Pensa em tudo o que as pessoas lhe dizem “que tens que assentar”, “está na altura de começares a ter juízo”, “que estás a fazer da tua vida?”, “o que queres fazer daqui para a frente?”

Toda a vida estivera agrilhoado a todas as conveniências da sociedade, tentando com teimosia subtrair-se a elas. Conseguira, aos poucos ir desviando a atenção de quem o rodeava e lhe vigiava os movimentos e intenções, sob uma capa de irresponsabilidade, desculpas, comportamentos de miúdo que teima em não crescer, mas no fundo a revolução intestina ia ganhando qualidades e armas para a guerra que se avizinhava.

“Vou mandar e desmandar, não viverei mais sobre a ditadura desta sociedade podre e corrupta que nos impõe aquilo que acha correcto mas não é de longe nem de perto melhor para nós! Vou castigar ou ser castigado a meu bel prazer. O meu livre arbítrio é o meu fio condutor e não vou deixar que o amordacem. Vou fazer o que os outros querem fazer mas não têm coragem para ir em frente.”

Era nestes moldes que a ainda verde consciência de Orniciteplático se movia e alimentava. Não que se considerasse superior aos outros, pura e simplesmente achava que era diferente e que entre viver uma vida em que as regras fossem viciadas e ditadas pelos outros, dentro de uma boa conjuntura económica, ou viver por aí sem monotonia e com o suficiente para viver em paz consigo próprio, escolhia a segunda e estava decidido a fazê-lo.

Scriptorium II

Aos 16 anos conheceu as palavras reveladoras de Umberto Eco. Depois de ler os seus romances enveredou por outras obras publicadas por ele e achou piada e apreendeu tudo o que lia com extrema facilidade. Soube então que a sua verdadeira vocação era a escrita e que seria a única forma de se sentir realizado, para isso o melhor curso seria a semiótica. Seguiu as passadas do seu ídolo literário e inscreveu-se no curso de Semiótica.

Quando começou a frequentar as aulas reparou que as cadeiras obrigatórias do curso não eram suficientes para a sua sede de conhecimento. Cagou no curriculum obrigatório e começou a escolher as cadeiras que lhe interessavam de outros cursos.

Ao princípio pensou que fosse uma teimosia sua, mas depois, numa das suas aulas o professor deu-lhe as certezas de que necessitava.
“Já começa a faltar aquele tipo de pessoas como havia antigamente. Nesses tempos as pessoas aprendiam um pouco de tudo, hoje limitamo-nos a criar especialistas que não tem a qualidade que tinham as cabeças de outros dias. Parece que saem formados com palas nos olhos e não percebem que a interdisciplinariedade só os ajuda.
Dou muito mais valor às pessoas que vão investindo num conhecimento abrangente em detrimento de uma investida em força num mesmo tema. Acho que só ficam enriquecidas por querer abrir os horizontes.”

Scriptorium

Em 19## Orniciteplático, seguindo a moda da educação da altura, resolveu frequentar um curso universitário. Tinha nessa altura uns bons e tenros 18 anos, a sensação que sabia tudo e o mundo real prestes a cair-lhe em cima.

Foi morar para uma residência de estudantes com mais 47 rapazes. Regime ditatorial disfarçado com paninhos quentes, mas ludibriado com facilidade pela guerrilha intelectual da estudantada. A governanta da casa impunha uma série de regras na altura do ingresso, mas as que na realidade funcionavam eram as dos mais velhos, que com muita diplomacia, através da praxe da casa, as transmitiam aos caloiros.

Uma das primeiras a aprender era quem quisesse levar uma rapariga para o quarto tinha que deixar um lenço à porta do mesmo para não ser interrompido. Funcionava como um compromisso de cavalheiros, porque rezava o lema da casa “Um dia por mim, outro por ti”. Muitas vezes chegara à porta do quarto e encontrara o lenço e nestas alturas tinha o saco cama na sala para depois se desenrascar no quarto de um dos outros inquilinos. Muitas vezes o seu colega sofrera na pele o mesmo tratamento, e nenhum dos residentes se importava.

A sala comum era o local de convívio eclético de alunos de várias faculdades da cidade, desde a Educação Física até à Matemática, tudo se encaixava. Depois do jantar era comum a reunião para jogar póquer, a partir da meia-noite, altura em que já não havia riso de mulheres aparecerem na sala, passava-se à sessão de cinema com os grandes clássicos como “O meu cavalo eras tu”, “Lágrimas sobre o meu salpicão” ou “Ai que me rasgas”, pilares fundamentais da educação dos jovens, gentilmente cedidos por um insuspeito residente do quarto 28 que tinha uma colecção de mais de trezentos títulos sobre esta temática.

Orniciteplático achava que o facto do pornófilo da casa morar no quarto número 28, não era uma coincidência mas um facto cabalístico de registo, tanto é que na sua terra a expressão para sodomia era “vou-te ao 28”. É claro que só na cabeça dele é que a coincidência funcionava, porque para além destas nuances de cultura campónia a que só ele tinha acesso, era desencriptado pelo curso que escolhera.

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