Thursday, February 03, 2005

Prelúdio a "O estranho caso das agulhas de pinheiro..."

O Tutor tinha vários daguerreótipos na cómoda da sala, mas o tesouro dos tesouros estava no armário do hall de entrada. Uma colecção de jovens com ar vitoriano posava sem expressão para uma objectiva, deixando a sua imagem imortalizar-se em poses lúbricas.

Gerador descobriu-as quando começava também a descobrir o seu corpo, feliz coincidência. Pegava nas chapas à socapa e fechava-se na casa de banho. Consolava o corpo secretamente, pelo menos assim julgava, e com aquele segredo crescia.

Os rapazes da sua idade, como sempre não tinham acesso aquele tipo de informação, mas também não seria ele, o culto ele, o orgulhoso ele, a partilhar aquele maná dos céus.

O seu conhecimento de anatomia feminino era então quase perfeito, e durante a noite sonhava com aquelas raparigas, bem mais velhas que ele, que mudas e quedas posavam para o fotógrafo invisível que nas suas fantasias era ele próprio.

Prelúdio a "O estranho caso das agulhas de pinheiro..."

O Gerador tinha então sete anos e o seu irmão nove. A mãe com parcos recursos, o Aferidor é que garantia a subsistência da família, entregou os dois filhos a dois parentes ricos para os criar. Assim da rua Decumanus Gerador passou para uns escassos metros perto, para a rua Cardus.

A mãe morreu dois meses depois. Desde a morte do marido que se sentava em frente a casa, num tronco de madeira, por osmose contraiu as qualidades do tronco. Lentamente, a sua pele secou, tomou a textura do carvalho, e com falta de emoções um dia não acordou.

Estava tão ligada ao tronco que tiveram que mandar fazer um caixão em L para que pudesse ser enterrada sem que lhe partissem as pernas. O tronco lá ficou, no mesmo sítio, não sem antes alguém se ter lembrado de o enterrarem com a morta.

Gerador, magoado com aquele abandono resolveu, nesse dia que não ia morrer, e durante muitos anos manteve a promessa.

Quando pela primeira vez teve consciência do que era a morte, ficou chocado, e a convicção de que não queria morrer ficou-lhe firme no coração. Esse momento em que notou a impiedosa ceifeira a arrastar a alma de outra pessoa, foi a epifania por que há muito esperava, resolveu constituir família, com quem ou quando não sabia, mas isso o tempo diria.

Fungicida

Fungicida vivia em frente ao Tasco. Tinha um horror absoluto a insectos e como no melhor pano cai a nódoa, foi agraciado com uma praga bíblica de pulgas. Todos os dias, sem excepção, tentava ver-se livre delas mas em vão.

Saía de casa às nove em ponto, ia até ao meio da rua e sacudia toda a sua roupa. Primeiro sacudia o lençol da cama, que de branco se transformava lentamente em castanho avermelhado, das cagadelas das pulgas, depois voltava a entrar em casa e vinha enrolado no lençol para poder sacudir as roupas que trazia no corpo. Nunca fazia o contrário, e achava que o lençol enrolado tipo toga romana lhe dava uma augusta presença.

Um dia aborreceu-se e encomendou ao Pedreiro um esteio que colocou no eixo da via. A sua roupa já estava impregnada daquele pó fino que pavimentava a rua e o chateava mortalmente. Assim passou a sacudir as pulgas da roupa naquele providencial monólito, tentando dia após dia livrar-se de tão abjectas criaturas.

Este local, desde que Fungicida começara o estranho ritual, tornara-se “locus non gratus” para todas as gentes de Terceleiros, inclusive os cães que não punham lá uma pata, com medo de ser contaminados com aquela infecção difícil de curar.

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