Tuesday, November 16, 2004

Primo Amore IV


Almoçou acompanhado dos habituées do seu local de eleição, na rua da Indústria do Papel, e sentiu-se só.

A porta está aberta. Entra e encontra pétalas de rosa a traçar um caminho. Segue-as apanhando uma por uma, com a adrenalina a puxar-lhe a mão à medida que encontra peças de roupa exteriores que se tornam, com a progressão da descoberta, em interiores.
Retira da maçaneta de uma porta as cuecas de cetim azul bebé e coloca-as na palma da mão. presume que é o quarto dela. A luz está apagada. Procura agora o interruptor mas está avariado. Por muito que tente habituar a visão à escuridão não consegue e avança a tropeçar em objectos que não reconhece.Tapam-lhe a boca com calor e carne e sente o cheiro familiar, o som das recordações e vê, tacteando, o cotovelo tantas vezes decalcado no livro de português.

Primo Amore III


Todo o tempo que usa para a criação está vedado. A loucura toma conta dele, com os mosquitos a fazer sinfonias constantes à volta da cabeça.

Dá conta de si febrilmente agarrado ao portátil, dedilhando uma peça para piano, dramática, transferida com celeridade do seu cérebro para o écran. Pensa naquilo que lhe tira o sono e decide, sem mais nem quê ligar àquele número que o castiga há anos sem conta. Bebe meio copo de bagaço enquanto ouve o tuuu ritmado da ligação, num tempo curto mas muito longo para a sua alma em conturbação constante.

Do outro lado uma voz feminina, jovial, responde, acedendo aos desejos de Orniciteplático. Quero falar contigo – do outro lado reconhecem a voz. É claro que quero falar contigo, já estou à espera há tempo demais, porque sabia que dependíamos da tua vontade, o.k. então às três da tarde, na minha casa, rua da Electricidade 125, é uma vivenda, até logo, um beijo.
A conversa parece-lhe unilateral, não tem consciência da sua voz na comunicação, um monólogo.
Alea jacta est! Lembra-se de Júlio, com as punhaladas nas costas, mas o único Brutus, covarde e não suspeito mas culpado será ele, se virar as costas ao que está prestes a concretizar.

Monday, November 15, 2004

Primo Amore II


Estava morta! Os seus sentidos confundiram-se numa mole ensanguentada. O seu nariz aquecia-lhe a cara como tantas vezes o seu tacto tinha feito, não por fricção mas por fluxo. O vermelho tingiu-lhe ainda mais os lábios de vermelho e a barba tornou-se ferrugenta, como se a frieza metálica tomasse conta da sua face.

Chorou pela boca, vomitou toda a vontade que tinha dentro de si, a vontade de dizer o que lhe faltava dizer e nunca mais lhe diria pessoalmente. O almoço saiu borbotado, pintando o soalho de multicolor, enquanto o seu cérebro espalhava imagens difusas de como foi, será e deveria ser...

O quadro estava quase completo não fossem os seus olhos adquirir a tonalidade e textura de chumbo. Correu desenfreadamente em direcção ao corpo inerte, morto, pétreo, branco. Com as mãos transmitiu o calor de que foi capaz, àquela posta de carne que merecia continuar a viver para lhe dar as alegrias, há muito prometidas com sorrisos e olhares cúmplices.

O mármore do chão, rosa, incorporou a imagem estendida e como um sudário adquiriu a forma, a cor, o calor, tornando-se flácido e de uma forma ainda não conhecida, humano.

Ao fim desses anos todos tinha tido por fim a coragem para entrar em contacto com Ela, mas encará-la desta forma e não obter uma reacção, fazia-o entrar numa dimensão irreal, estúpida, irreal!
Nessa manhã a insónia atormenta-o.

Primo Amore

Começou com lentidão a super-idealizar a imagem de tão delicada rapariga. O cabelo liso e preto caía-lhe sobre os ombros e era recortado com mestria na testa cobrindo-lhe metade, dando um ar pueril e cleopátrico, definiria anos mais tarde. O seu sorriso faria com que desfrutasse aquelas aulas de uma forma repleta de prazer, muito ao contrário das outras. Talvez devido a isto a sua paixão pela língua materna tenha uma fácil explicação. Nas outras disciplinas a ordem alfabética não era observada o que fez com que passado um ano todas as páginas do lado direito do seu livro de português, tivessem o cotovelo da sua amada desenhado. O contacto com o seu livro seria o seu elo na realidade do plano físico, porque o resto era pura e simples platonismo.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?