Wednesday, June 22, 2005

Geração de 70


Oliveira Martins

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“Espera aí, achas mesmo que Gabito era assim calculista ao ponto de transmitir as coisas dessa forma?! Acho que não há escrita mais pura e ingénuas que a dele!” Mercúrio mostrava os dentes em intenção claramente belicosa.

“Meu amigo, ingénuo és tu ao pensares dessa forma! Um escritor que reescreve vezes sem conta, é tudo menos puro e ingénuo. Gabito é um escritor de filtragem. Vai filtrando, depurando até ao produto final, o que não lhe retira o mérito, antes pelo contrário, aliás é excepcional na forma como o faz.” Aos poucos, Narciso, ia subindo o tom de voz, para abafar a aguilhoada de mercúrio. Estava com vontade de o dizimar até à última sinapse.

“Calma aí que as coisas não são bem assim” Tântalo mete a colherada “como sabem ou se calhar ficam a saber, Gabo não é um filtro, antes um perfeccionista. As coisas saem como ele quer ou então não servem para nada. Perfeccionista, porque não gostando do resultado final, destrói-o, para não conviver com um fracasso e depois reescreve até lhe agradar o aspecto formal.

Não é daqueles escritores que escreve e vai corrigindo, sai-lhe tudo em catadupa e é assim que depois apresenta aos leitores.
Acredito que tenha o embrião da ideia já implantado na sua cabeça, mas não é calculista ao ponto de as ir moldando e filtrando como dizias à pouco.

Só necessita da forma certa de transpor o que tem nos neurónios para o papel. Narciso, tu melhor que ninguém, devias saber isso, afinal a tua escrita é automática, sem correcções, e acabas por ter 60% de coisas boas, 20% de óptimas e 20% de sofríveis.”

Tuesday, June 21, 2005

Geração de 70


Guerra Junqueiro


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Mesa ao lado, dois traçadinhos antes.
Uma cabeça morena ouvia as palavras de Narciso com atenção.

“O romance não é mais do que uma tentativa de auto-afirmação, aliás, qualquer tipo de literatura é em grande parte um exercício de narcisismo.
Escrevemos com o intuito primordial de transmitir algo que nos vai na alma, mas este altruísmo escrito, não é mais que uma capa para a verdadeira razão que nos move a pena.
“Já Garcia Marquez dizia isso numa passagem de «Em busca das chaves de Melquíades», a desconstrução de «Cem Anos de Solidão», o livro escrito pelo irmão. O Elígio…”

“Já morreu, sabiam?” Mercúrio interrompeu Tântalo.

“Não, por acaso não sabia” e continuou “Bem, mas Gabito dizia que desde miúdo, o ilusionismo e a escrita eram as duas formas que arranjara para os amigos gostarem mais dele.”

“Lá está!” proclamou Narciso “É uma forma de narcisismo! Gabito é antes de mais uma pessoa insegura, ou era, e como tal, para poder escrever tem que alimentar a autoconfiança, e de que melhor forma o pode fazer, senão alimentar o seu ego através de influências exteriores?!
Rasga e volta a rasgar os seus rascunhos, com os amigos em desespero, sempre a dizer-lhe que a sua escrita é óptima, fora de série, por entre álcool e mulheres com fartura. No seu íntimo acredita que sim, que é excepcional, mas transmite sempre aquela falsa modéstia. Para ilustrar a consciência que tem deste facto, que melhor que uma famosa frase em relação aos «Cem Anos de Solidão» que dita que o mais difícil foi escrever a primeira frase, e que depois ficou aterrorizado em relação ao que iria escrever a seguir.
Para mim, foi só fachada para que os amigos lhe dissessem que era magistral, não era costume nem nada.”

Friday, June 17, 2005

Geração de 70

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“Interrompo?”
Morena, metro e setenta, sorria e deixava transparacer confiança. O Grupo reconhecia-a de estar com frequência a matar traçados e cervejas nas mesas d’ A Galeria. Nunca nenhum fizera o esforço para se relacionar mas sem dúvida que este seria o momento certo para tal.

Sentou-se e declarou “Não pude deixar de ouvir a vossa conversa e gostava só de dizer umas coisinhas. Tu – virou-se para Narciso – deves pensar que és o senhor da verdade. A presunção, a arrogância transparecem na tua voz. Consegues construir o teu discurso de uma forma magistral, só é pena que não consigas ser mais humilde, porque a certa altura tornas-te pedante e com uma certa tendência para humilhar quem te rodeia. A partir daí tudo o que sabes, o conteúdo, perde-se porque é cilindrado pelo sentimento negativo que imprimes com a atitude.”

Mercúrio riu à gargalhada ao olhar para a cara de Narciso que se tornara branca mas calou-se mal a morena abriu a boca pela segunda vez.
“Não te rias que ainda te engasgas. Acho que tens algum problema com o conhecimento. És muito vago no que dizes, que conheces isto e quilo e sabes até alguma coisa, mas quer-me parecer que não sabes grande coisa, o que tens é um saber residual. Ia jurar que lês os apontamentos Europa América em relação à literatura, sinopses dos filmes n’ O Público, engoles as descrições de obras de arte em livros que tem como título “Como reconhecer…”.
És vago, e quando já se esgotaram os apontamentos de uma matéria, levas a conversa para outro tema residual como tu.”

Embrulha, pensou Narciso sem esboçar um sorriso.
Tântalo esperou pela bujarda que não tardou.


Antero de Quental

Monday, June 13, 2005

Geração de 70



Eça de Queirós

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Circulavam n’ A Galeria por entre fotógrafos, jornalistas, escritores, músicos, actores… a promessa do futuro cultural da cidade, caucionados com o epíteto de “pseudos”.

Numa noite de traçadinhos, como já era costume e tradição por estas alturas – ajudava à mecânica da mente - encontrava-se Tântalo acompanhado de Narciso e de Mercúrio, recém adquirido membro da G70.

Levara o nome devido ao seu jeito especial para os negócios. Só não vendia a mãe porque não conseguia passar recibo. Para além disso estava sempre envolvido em negócios obscuros e tentava arranjar formas de arranjar dinheiro sem muito trabalho.

Dispersavam-se em conversas que chamavam a atenção a três vizinhas na mesa ao lado. Narciso, como sempre, era audível em toda a parte devido à exuberância dos gestos e à tonalidade altitroante da voz, debitava conhecimento em doses generosas.

A questão era relativa a literatura e desta vez, que não constituía exemplo em relação a outras, discordava com Mercúrio.
Tântalo molhava um pouco a fogueira discursiva fazendo sinal ao excesso que ia aumentando de tom e intensidade.

Geração de 70

Os frequentadores d’ A Galeria eram a eminência da elite intelectual. O Grupo em conversa definia-se como uma espécie de snob cultural. Não é que se recusassem a privar com pessoas culturalmente menos dotadas, mas preferiam agarrar-se a indivíduos ou grupos que entendessem a língua por eles falada ou que tivessem algo de novo para transmitir.

“A Geração de 70” foi assim que se passaram a definir, já que todos tinham sido fruto da revolução, nascendo depois do 25 de Abril.

Em termos culturais eram o último reduto dos enciclopedistas, avessos a especializações em qualquer área. Não as desprezavam, antes eram abertos a todo o tipo de conhecimento. Gostavam de o sugar para dele tirarem proveito.

Notavam que a geração que os sucedia se agarrava com todas as forças a uma especificidade e cuspiam em cima de qualquer outra cruz que não fosse a sua. O resultado era uma macrocefalia na sua área de estudo, compensado com a acefalia nas outras, não conseguindo manter uma conversa, que fosse no mínimo coerente, num domínio que não fosse o seu.
Ramalho Ortigão

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