Friday, December 17, 2004

Scriptorium VII

O Grupo conheceu-se e formou-se n’A Galeria. Não tinham intenções políticas nem nada que se assemelhasse, tinham o gosto comum por copos de vinho e o combate feroz à extinção da Tradição. Quando tomaram consciência de como tudo à sua volta se desmoronava, consolidaram a amizade que tinham criado com a argamassa da intelectualidade.
Juntavam-se quando calhava, muito por acidente, não gostavam de ficar em casa agarrados ao cinescópio, e divertiam-se a pensar em novas formas de sublevação cultural com medo de cair no marasmo social que contagiava todos como a peste bubónica.
N’A Galeria servia-se de tudo um pouco da dita dieta mediterrânica. Vinho, azeitonas, o delicioso pão de trigo e a broa de milho barrados com azeite do interior, tudo muito caseiro e alimentício, propulsores da mente e combustíveis do corpo. A cerveja, herança da Idade do Ferro, quase nunca metia bedelho por ser incompatível com a maioria dos petiscos servidos.
O Grupo diletava acerca de projectos demasiado utópicos para o comum dos mortais, mas para eles fazia todo o sentido. Numa das inúmeras conversas, surgiu a ideia do jornalismo anacrónico, exercício capaz e robusto, que lhes permitia dar largas à imaginação com uma poderosa argumentação científica. No fundo era uma forma de aumentar o conhecimento através de brincadeiras e jogos de palavras. Tudo começou numa noite de copos, para variar.
Os cinco meninos do grupo debatiam-se com coragem e valor com um bolo-rei, posto na mesa pelo Sr. Eduardo, quando Rumelardo, o mais novo do grupo, conhecido pelas suas ideias loucas lançou a malha à mesa.
“Estou a ler um romance que fala sobre cultos do século IV d.C., mas isto não interessa nada, é só para vos situar cronologicamente. Há uma passagem que me fez parar e pensar. Numa descrição de uma mulher, ela é apresentada ao leitor como cheirando a cravo-da-índia, entre outras fragâncias...”
Respirou, bebeu um pouco de vinho e notou que a frase fizera efeito e que os colegas desejavam beber o resto da exposição dos seus lábios.
“É um romance histórico, pensei, mas quem escreve uma obra deste tipo tem que ser mais cuidadoso, principalmente com os anacronismos.
Facto: os romanos de certeza que conheciam esta especiaria, aliás havia linhas de abastecimento de especiarias provenientes do Oriente.
Questão: os romanos conheciam a Índia com este nome?
Conclusão: Índia é uma versão do termo Persa Sindhu, que é o nome comum do rio Indo. O nome Índia é começado a ser usado pelos europeus como uma europeização de um termo que não encaixava nas nossas línguas, tanto mais que desde a dinastia Mughal, que começa cerca do ano Mil, os nativos deste simpático país apelidam a sua pátria de Indostão ou Hindostan. Quer dizer que usar o termo cravo-da-índia na época romana é um anacronismo.”

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